Tinha duas coisas na maleta, uma delas estava carregada.
Há muito havia se acostumado à venda. A primeira visita ao cemitério prometia a absoluta escuridão. Depois da terceira tudo o que encontrou foi a apatia. De alguma forma parara de fazer sentido.
Caminhava pela rua se orientando pelos murmúrios. É impressionante como o cérebro era capaz de se adaptar, bastava pôr um pé após o outro e seguir os ouvidos, sem confiar completamente neles. Aliás, enquanto se concentrasse na lembrança do beijo na testa que deixara pra trás ao fechar a porta, tudo estaria bem. Só precisava se concentrar na memória e não na música.
Soube imediatamente que havia chegado. Haviam lhe avisado que o cheiro seria inconfundível. O que lhe fez ter certeza foi o gosto pútrido que escorreu pela garganta.
— Nnnf hhjh jhj. — O grunhido vesânico arrancou-o do transe.
De alguma forma seu cérebro traduzira automaticamente. Faltavam-lhes ferramentas, e a todos os outros pra ser honesto, para entender como é que eles conseguiam fazer aquilo.
O que é seu preço?
— Está na maleta.
Alan estendeu o objeto no escuro-além-da-venda. Os pelos que roçaram-lhe a mão — que mais pareciam cerdas — fizeram-lhe arrepiar ao toque frio dos dedos compridos.
Ouviu o clique da maleta e um sussurro de quarenta vozes. O coração parou de bater por alguns segundos, como também lhe disseram que aconteceria. Cada segundo pareceu se arrastar.
O segundo clique carregou o alívio. Sua moeda de troca valia.
Um ruído raspado e viscoso se seguiu. Um passo após o outro, sempre em frente. Alan caminhou por cinco minutos, pelo que pareceu uma sequência de estalos ocos e crepitações cartilaginosas.
Não soube por quantas portas passou até chegar no átrio. De lá, uma canção desafinada — como se duas composições em ritmos diferentes — se sobrepunha. Um coro de ninar infernal carregado pelas cordas de uma dissonância angelical.
Então, uma força invisível o impediu de se mover.
— Nnngghrakjz. — O idioma lamacento era o mesmo, mas o tom dessa voz era afiado e sublime como uma navalha de fio que roçou seus ouvidos e pescoço.
O que é sua vida?
Concentrou-se em Lia. Sustentou um sorriso pálido. A memória da pequena dormindo antes de ele sair era tudo que tinha a oferecer. Será que até o fim se lembraria do porquê havia começado?
A venda nunca lhe permitiu saber se o abraço eólico que se desfizera era parte da criatura ou da sua imaginação. Mas ele soube que era sinal para seguir em frente.
Ou melhor, para baixo.
Por incrível que pareça, um bom sinal. Se sua jornada fosse ao topo, temia que as cartas já estivessem marcadas.
Abaixo de seus pés encontrou o primeiro degrau. Ele podia sentir o gosto da podridão. Cada passo ao fundo era uma aposta. O coro se tornou mais evidente, mais visceral, como se cada voz ventriloquasse cada músculo do seu corpo. Ficava cada vez mais difícil se concentrar. O único consolo é que as cordas desvaneciam com a ascendência ao abismo.
Quando os pés tocaram o fundo, houve um estalar seco, como se pisasse em pedaços frágeis de humanidade.
A voz que dessa vez lhe recebeu era invariavelmente humana.
— Bem-vindo ao cassino. — Um chiado fino, como um sibilo, mas ainda assim humano. — Deposite suas apostas no chão à sua frente.
A música era infernal. Se concentrar na memória dela se tornara insuportável. Precisava conseguir. Era tudo por ela.
Alan cuidadosamente se ajoelhou e abriu a maleta. Retirou de lá de dentro um pedaço de papel plastificado quadrado e depositou ao chão na sua frente.
— Você tem uma bela filha. — Alan conseguiu sentir o sorriso malicioso por trás das palavras.
Como é que essas coisas conseguiram o que conseguiram tão rápido?
— Qual é sua compensação?
— Um milhão de horas. Na conta dela. — Apontou para o chão, ainda de venda.
A criatura riu abertamente. Um coro de infinitas vozes.
— Muito bem, pode tirar sua venda se você está pronto.
Lentamente Alan desfez a venda.
O que viu em seguida jamais pode se lembrar ou se esquecer. Caminhou para casa com a maleta em mãos, sem a foto.
Em sua mente, apenas sangue e sede.
Antes de abrir a porta, disparou a arma.

